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terça-feira, 1 de outubro de 2013

A bruxa solitária de Rae Beth

A maior surpresa sobre bruxaria, para a maioria das pessoas, uma vez entendido que não somos "adoradores do diabo" nem "instrumentos do poder do mal" (no verdadeiro estilo dos filmes de horror), é que veneramos uma entidade feminina, uma Deusa. Também veneramos um Deus. Isto não surpreende ninguém. Mas reverenciar a Mãe de Toda a Vida, nesta cultura, é inesperado. Tem implicações
espirituais, emocionais e sociais. 

Historicamente, as bruxas foram perseguidas por sua crença em uma Deusa. Isso era politicamente inaceitável num regime patriarcal. A veneração à Deusa teria que significar, por exemplo, que a terra, a Mãe Terra, seria de novo sagrada. Ela não deveria mais ser poluída ou explorada por qualquer razão, e se perderia uma enorme quantidade de poder ou lucro obtido por homens inescrupulosos. Melhor, do ponto de vista deles, venerar um Deus que é todo mente e espírito e vive lá no alto, longe da horrível e "pecaminosa" Terra.
Na visão espiritual de nosso mundo moderno, a feminilidade há muito tempo não é considerada tão sacra quanto a masculinidade. A mulher, em todas as religiões patriarcais — o cristianismo e o islamismo em particular — é vista como aquela que traz o pecado, a traição, a armadilha ao sexo "santo". Mais próxima da animalidade, pela menstruação e parto, e da terra. Como pode haver um deus feminino?, as pessoas indagam. As bruxas dizem que o parto é o ato criativo original, e que os seres pré-históricos adoravam tanto os deuses quanto as deusas (principalmente as deusas) desde tempos imemoriais. Isto está descrito nas mitologias mais antigas, e identificado por inúmeras figuras e esculturas de deusas,
descobertas em sítios arqueológicos, no mundo inteiro.
Hoje em dia, algumas bruxas, rebelando-se contra a cruel supressão da Deusa, chegam a dizer que somente Ela deve ser venerada. Uma compreensível, mas triste reação. Entretanto, o Pai de Toda a Vida, o Deus, precisa também de reconhecimento. Ele existe, e Sua omissão seria tão errada quanto a destruição da crença na Deusa Mãe. E nesta obra não faremos distinções entre o masculino e o feminino. Quando nos referirmos a bruxas, estaremos incluindo os bruxos. E vice-versa. A verdadeira meta é a reconciliação dos opostos. A amargura, o ódio e o ressentimento entre os sexos são antigos como a própria história, mas a bruxaria é a única religião que possui como alvo a cura destas feridas. Lamentavelmente, existem no mundo pessoas, de ambos os sexos que não desejam a reconciliação ou não crêem nessa possibilidade. A elas, por elas, não falo. Falarei a vocês dois e talvez a outras pessoas.Afirmo que a bruxaria, pelo menos potencialmente, é uma religião purificadora. De onde ela recebe suas credenciais? Qual é a sua história? A feitiçaria provém do paganismo. Mais especificamente, é um ramo do paganismo com raízes no passado neolítico. Evoluiu e se manteve durante milhares de anos de perseguição. No tempo presente, é um sistema de crenças e práticas encantatórias, dedicado à restauração da harmonia perdida entre a humanidade, e aos aspectos sutis, transracionais da vida e seus mistérios. Acreditamos que será também a restauração da harmonia perdida entre o ser e a Mãe Terra. Renascendo agora, é, contudo, uma forma da velha religião. Sabemos hoje por que foi classificada como má. Pois tal calúnia é a prática comum, sempre que uma nova religião substitui a antiga. As feiticeirasnão são necessariamente más. Elas são simplesmente seguidoras de uma religião anterior aocristianismo.
O segundo fato surpreendente: nem sempre as bruxas são velhas, embora muitas o sejam.
Nenhuma delas é mais propensa às verrugas do que algum outro membro da população (embora
tenham maior facilidade em afastá-las por meio de feitiços), nem são reconhecíveis. Não usam altos
chapéus negros, e podem ser de qualquer idade ou sexo. Os homens também se chamam de feiticeiros
ou bruxos. Alguns trabalham em conjunto, ou sozinhos, e outros, como eu, junto a um parceiro
mágico. Mas não se adivinha quem, dentre seus vizinhos, poderia ser um bruxo.Sim, praticam a magia. Não para rogar pragas ou prejudicar, mas para ajudar e curar. Se funciona? A magia alcança algum propósito? Terceiro fato surpreendente: sim. Mas precisa de um aprendizado, como qualquer outro estudo.É verdade, sim, que alguns feiticeiros cumprem seus ritos nus. Mas as bruxas solitárias praticam sua magia desta maneira, por acreditarem que seus corpos são sagrados e sentirem prazer na liberdade e na beleza da nudez. Além disso, a tradição diz que a magia funciona melhor assim, pois roupas impedem o fluir da energia etérica da feitiçaria. No verão, claro, ou diante da lareira acesa. Os 
arrepios não nos levariam a efeitos mágicos.
Bem, vocês perguntam, após a questão da nudez, e o deus com chifres e cauda bipartida? Que
tal o Velho Cornífero? Você realmente adora o Diabo? Não há fogo sem fumaça.
O velho Cornífero? Sim. O Diabo, princípio do mal? Não. O Deus de Chifres, para as bruxas,
é o companheiro masculino da Deusa Tripla. Ele é dinâmico, a força vital, aspecto masculino de toda a
natureza. Nós o veneramos porque veneramos a vida. Ele possui chifres e cauda, que denotam seu conhecimento instintivo e animal, sua sapiência natural. Este Deus é parte bicho e parte homem,
mescla da força vital e perícia xamânica. O Deus Cornífero, como a Deusa, é sexual, terreno,
apaixonado e sábio. Cruel e mau ele não é. Entre os dois, a Mãe Deusa e seu companheiro, se
constrói o mundo. Eles o construíram de amor e desejo. Portanto, a sua sexualidade é uma
força vital sagrada, verdadeira experiência espiritual. Potencialmente, a mais espiritual das
experiências.
Talvez este seja o fato mais surpreendente de todos a respeito da feitiçaria. Não
deveria ser. Mas preciso admitir que neste mundo, como ele é atualmente, a maioria das
pessoas encontra dificuldades em relacionar sexo com espiritualidade. É contra tudo que as
religiões patriarcais ensinaram sobre o sexo, como vergonhoso e sujo (no máximo necessário
para a continuidade da espécie). Eu e minhas
companheiras bruxas cansamos da falsa imagem de que usamos altos chapéus negros, de que
cozinhamos revoltantes sopas com asas dos morcegos, que rondam os pátios das igrejas na
calada da noite, colecionando unhas de defuntos. Não faço isso. Não fazemos.

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